André Furtado, Doutorando no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense (PPGH-UFF), sob a orientação da professora Dra. Giselle Venancio. Contato: afurtado@id.uff.br

Adeus ao historiador Sérgio Buarque de Holanda

Inimigos do governo se reúnem em São Paulo

Em 1982 morreu Sérgio Buarque de Holanda, ex-professor catedrático da Universidade de São Paulo (USP) e autor de obras como Raízes do Brasil (1936) e Visão do paraíso (1959). Na ocasião a sociedade brasileira vivia momentos de intensos debates, devido à transição democrática, de modo que o falecimento suscitou inúmeras publicações na imprensa, nas quais é possível escrutar tal circunstância. Ao tom pesaroso somaram-se manifestações deFurtado-A-Sergio-Buarque-KP reconhecimento à sua enorme contribuição ao país, cujo crédito era fortalecido por intermédio de sua identificação com as lutas travadas contra a ditadura.

Salvaguardado o devido respeito, pode-se afirmar que as homenagens funcionaram como espécie de plataforma política para que as batalhas pela abertura fossem projetadas, devido à presença nos funerais (velório ou cremação) de figuras como o sociólogo e suplente de senador pelo Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) Fernando Henrique Cardoso; o deputado Alberto Goldman da mesma legenda, mas oriundo do Partido Comunista Brasileiro (PCB) clandestino; o advogado e presidente da seção paulista do Comitê Brasileiro pela Anistia (CBA) Luiz Greenhalg, dentre outros.1

A propósito de uma república não-proclamada, a fundação do PT e do cebrade

Movimentos pela redemocratização se avolumam em todo país

Furtado-B-Sergio-Holanda-KPApós o golpe civil-militar de 1964 e, em especial, a partir de 1969, Sérgio Buarque assumiu posturas contestadoras do governo e atuou para o término do julgo ditatorial. Na série de três artigos publicados no Jornal da República, por exemplo, desqualificou a efeméride do 15 de Novembro, tão cultuada e cara às Forças Armadas do Brasil. Nos textos, intitulados Uma república não-proclamada e feitos com base em fontes à época inéditas sobre a história do país encontradas no Arquivo Nacional de Washington (EUA), escreveu que a campanha republicana do século XIX se realizou apenas em parte, “pois o que aparece é unicamente a ditadura militar, mal coberta com um barrete frígio que não lhe assenta direito”.2Furtado-Encart1

Como se não bastassem estes escritos de cunho histórico, mas de tom provocativo, participou da fundação do Partido dos Trabalhadores (PT) e, antes disso, do Centro Brasil Democrático (CEBRADE), em 1978, junto de muitos intelectuais, para alcançar a redemocratização, dividindo a vice-presidência com o editor Ênio Silveira ao lado do presidente da entidade, o arquiteto Oscar Niemeyer. Tal gesto representava um prato cheio aos órgãos de vigilância, pois as informações levantadas pelos agentes da repressão registraram as estratégias da entidade e também arrolaram nomes como os de Nelson Werneck Sodré, Mário Schemberg e Leandro Konder como articuladores do projeto, entendido como propagador da ideologia marxista e formador os quadros do PCB, “em flagrante afronta à Segurança Nacional”.3

Cerca de uma década antes, outro exemplo da atuação de Sérgio Buarque para protestar contra o regime se deu com a aposentadoria na USP. Tudo ocorreu em 1969, após a decretação do Ato Institucional nº 5 (AI-5) no fim do ano anterior, que expurgou diversos professores. Logo, mesmo sem ter sido cassado, sua atitude de solicitar afastamento foi vista como um belo gesto de solidariedade com os colegas que tiveram suas liberdades cerceadas.

D. Pedro i, herói perfeito

Governo Médici comemora Sesquicentenário

Ao questionar 1822 como marco da autonomia política nacional em sua obra Do Império à República, impressa quando a ditadura comemorava o Sesquicentenário da Independência do Brasil (1972), Buarque de Holanda caracterizou ainda D. Pedro I como espécie de anti-herói. Esta circunstância nada tinha de ingênua, porque a efeméride contou com o traslado dos restos mortais do Imperador, cujas cinzas deixaram Portugal após acordos diplomáticos, e serviram para ornar a figura real de virtuosidades para aquela data festiva. O esquife do monarca atravessou o Atlântico privado de coração, pois o órgão foi deixado à cidade do Porto, em respeito ao desejo testamentário de D. Pedro I, para agradecer o apoio recebido dos citadinos nas batalhas que lá travou, em 1828, contra seu irmão D. Miguel, usurpador do trono português. Impossível imaginar escolha mais acertada: o regime civil-militar, sob o governo do general Emílio Médici (1969-1974), elegia um herói sem coração.Furtado-Encart2

Por tudo isso, o período ditatorial representou momentos decisivos na trajetória de Sérgio Buarque de Holanda, rumo à canonização de sua autoria como historiador de referência, sobretudo, por intermédio do destaque às atitudes contrárias ao autoritarismo. Assim, fosse em protestos públicos, nas entrelinhas de sua escrita da História ou apoiando a fundação de entidades junto de outros intelectuais, essas atitudes e sujeitos desqualificavam o governo ante a opinião pública e iam minando bases importantes do regime. Sinal dos tempos e constitutiva dos acontecimentos, a força das palavras da cultura escrita emergente naqueles anos ajudou, sobremaneira, na (re)construção da democracia representativa no Brasil.

Objetivo principal da tese

Embora entendendo o período autoritário como decênios de aumento nos processos de monumentalização da autoria de Buarque de Holanda como referência indispensável à interpretação do país, o objetivo central da tese consiste em analisar parte de sua trajetória e os relacionamentos pessoais, institucionais e editoriais constituídos por meio de práticas letradas, para compreender os processos históricos da cultura escrita a que esteve envolvido e problematizar os caminhos de sua formação, consolidação e canonização enquanto historiador de uma moderna tradição no Brasil do século XX.

1 Série: Homenagens Póstumas. 2528. Hp 45 P76. Fundo Sérgio Buarque de Holanda (SBH). Arquivo Central da Universidade Estadual de Campinas (Siarq-UNICAMP).
2 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Uma república não-proclamada III. In: Jornal da República. São Paulo, 20 nov. 1979, p. 4. Biblioteca Nacional (BN).
3 Arquivo Nacional (AN). Documentos do Executivo e do Legislativo. BR.AN.RIO.TT.0.MCP, AVU.431. UD 154. 13 folhas / 13 páginas. Confidencial. 07 out. 1980. Assunto: CEBRADE, p. 3-4.
A – Sérgio Buarque na fundação do PT. SP, 1980 (www.siarq.unicamp.br/sbh/biografia_18.html).
B – Sérgio Holanda, Oscar Niemeyer, Antonio Houaiss e Ênio Silveira na instalação do CEBRADE, RJ, 1978 (www.siarq.unicamp.br/sbh/biografia_17.html).

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