Patrícia Machado, Universidade Federal do Rio de Janeiro (ECO-UFRJ) – Brasil

A pesquisa tem como objeto de estudo imagens de arquivo que foram produzidas nas décadas de 60/70 com o objetivo de testemunhar as manifestações de rua, a movimentação popular e o testemunho das vítimas da ditadura militar no Brasil. Analisamos esse arquivo audiovisual produzido por diferentes cineastas ou cinegrafistas, que ficou escondido nos acervos públicos/privados ou foi levado para o exterior de forma clandestina por conta da censura e das perseguições políticas que se intensificaram após o golpe militar. Exploramos um raro e importante material encontrado em acervos da Cinemateca Brasileira, da Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, do ICAIC (Instituto Cubano del Arte y Indústria Cinematográficos), em Cuba, do Institut Nacional Audiovisuelle, e da ISKRA (Image, Son, Kinescop, Realizacion Audiovisuelle), em Paris.

A pesquisa, orientada pela professora Consuelo Lins, se divide em duas vertentes: na primeira trabalhamos com as fontes primárias, as imagens em estado “bruto”, para pensar no momento da tomada, nos gestos de quem filmou que estão guardados na imagem, nos riscos de filmar determinado acontecimento histórico, e resgatar os sentidos e as trajetórias dessas imagens de arquivo; na segunda nos detemos sobre os processos de reapropriação e ressignificação dessas imagens em documentários do cineasta francês Chris Marker (Le fond de l’air est rouge, 1977, On vous parle du Brésil: Tortures, 1969
, On vous parle du Brésil: Carlos Marighela, 1970)
e em filmes brasileiros contemporâneos (Hércules 56, Silvio Da-Rin, 2006, Em nome da segurança nacional, Renato Tapajós, 1984, Flávio Frederico, Cidadão Boilesen, Chaim Litewski, 2009, O dia que durou 21 anos, Camilo Tavares, 2012, Em busca de Iara, Flávio Frederico, 2013.

Nossa proposta é nos determos em um período de conflito da história do Brasil, cuja memória se manteve suspensa e da qual pouco se falou nas décadas seguintes ao processo de redemocratização e abertura política. O interesse crescente pelos arquivos audiovisuais produzidos nessa época são reveladores do momento atual do Brasil onde se engendra, lentamente, a reivindicação pela memória dos 21 anos de ditadura militar, com a abertura de arquivos secretos, com a restituição da verdade em torno dos desaparecidos e dos assassinados pela repressão política. Com a instalação da Comissão Nacional da Verdade, em maio de 2012, o debate sobre o significado desta memória ganhou um impulso inédito, assim como se multiplicaram os filmes que procuram construir a memória daquele tempo.

Podemos observar que grande parte dos documentários sobre o tema produzidos recentemente no Brasil utiliza, como um dos procedimentos de escrita de uma memória histórica, essas imagens de arquivo que estavam se deteriorando em acervos públicos e privados. Essas imagens por tanto tempo esquecidas, que pairavam como fantasmas, que estavam desaparecendo, passam a despertar grande interesse de cineastas e pesquisadores. Nossa intenção é compreender o momento da tomada, as migrações, as trajetórias percorridas por esses documentos audiovisuais que são marcados por memórias históricas e hoje, com a distância temporal, são abertos para infinitas ressignificações.

Caixão do estudante carregado por manifestantes, filmado por Eduardo Escorel.

Caixão do estudante carregado por manifestantes, filmado por Eduardo Escorel.

Um exemplo dessas imagens clandestinas que chegaram à França, e que foram retomadas pelo cineasta Chris Marker, são os fragmentos filmados por dois cinegrafistas solitários, no dia do cortejo fúnebre e enterro do estudante Edson Luis, assassinado pela polícia em 1968. Pressentindo a importância daquele momento histórico, José Carlos Avellar e Eduardo Escorel pegam suas câmeras para registrar o evento que reuniu mais de 50 mil pessoas nas ruas do Rio. De lugares diferentes e sem saber que o outro também estava filmando, eles acompanham o cortejo. No percurso, produzem imagens que se tornam testemunhas raras de um evento que se organizou espontaneamente e foi a primeira grande manifestação pública contra o regime militar no Brasil.

Multidão filmada por Eduardo Escorel no cortejo fúnebre do estudante Edson Luis.

Multidão filmada por Eduardo Escorel no cortejo fúnebre do estudante Edson Luis.

Quando filmam o cortejo, os cinegrafistas sentem que aquele é um momento importante, de grande comoção, embora não possam prever o embrutecimento do regime. De alguma forma, eles captam imagens que carregam marcas da emoção e da selvageria que se aproxima nesse momento histórico. As manifestações naquele início de 68 prenunciaram a decretação no mesmo ano do AI5, que deu início ao período negro da ditadura.  No momento em que filmam, os dois cinegrafistas brasileiros têm consciência de que essas imagens não serão imediatamente exibidas, que vão ficar escondidas, guardadas, e talvez só serão vistas mais tarde. Mesmo assim, realizam o que consideram uma tarefa. Trata-se de um sentido de urgência, de uma intuição sobre a importância de se filmar uma acontecimento histórico. Ambos, de alguma maneira, antevêem o futuro e produzem imagens que apresentam os sinais uma repressão cruel, responsável por torturas e assassinatos, que vai se desenrolar e ganhar força na América Latina. A partir do engajamento desses cinegrafistas no presente é produzido um testemunho para a posteridade.

Frames retirados do video:

Bibliografia:

• DARLEY, Catherine. De Slon à Iskra. Quinze ans de cinéma militant, 1967-1982. Maîtrise : Universit́e Paris 1 : 1983 . Directeur : A. Prost
• DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo. Uma impressão freudiana. Rio de Janeiro: Relume du Mará, 2001.
• ESCOREL, Eduardo. Vestígios do passado. CPDOC 30 anos / Textos de Célia Camargo… [et al]. Rio de Janeiro: Ed. Fundação Getulio Vargas/CPDOC, 2003
• FARGE, Arlette. O sabor do arquivo. São Paulo: Editora da Universidade São Paulo, 2009
• FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010
• FRANÇA, A., LINS, C. e RESENDE, L. A noção de documento e a apropriação de imagens de arquivo no documentário ensaístico contemporâneo. In: Galaxia. 21 (2011)
• LEANDRO, Anita. O tremor das imagens: Notas sobre cinema militante. Devires, Belo Horizonte, V. 7, N. 2, P. 98-117, JUL/DEZ 2010
• LINDEPERG, Sylvie. La voie des imagens: quatre histoires de tournage au printemps-été 1944. Paris: Editions Verdier, 2013
• VALLE, Maria Ribeiro do. 1968: o diálogo e a violência- movimento estudantil e ditadura militar no Brasil. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2008

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